A cultura brasileira já é um prolongamento da cultura africana, pois aqui é o país que
tem o maior número de negros depois da própria África. Só que o povo europeu tentou fazer
com que essa cultura fosse encoberta de várias maneiras, mas a principal foi o incentivo
governamental dado aos povos europeus entrarem em nosso território após a Proclamação da
República, com vistas a tentativa de embranquecimento do povo. O que não conseguiram!
Beatriz Nascimento (1989) focou suas reflexões desencobrindo tudo. A medida em que a
cultura africana vai sendo desabrochada a resistência político social vai sendo exposta,
acabando de vez com sua invisibilidade cultural e consequentemente voltando a ser nossa a
cultura sequestrada. A cultura africana também é a nossa cultura tradicional! Uma das formas
para que esse desabrochar aconteça, segundo Muniz Sodré (2005), seria através de um
mergulho profundo na comunidade litúrgica afro-brasileira fazendo renascer as noções e ideias
“de um corpo grupal forte o suficiente para dar proteção contra as adversidades, contra o
estrangeiro hostil”. Essa liturgia que relaciona o homem com a divindade exprime toda a
ligação com a cultura e patrimônio dos ancestrais através da dança, dos mitos, das comidas,
dos valores, implementando ligações sociais entre as diversas formas de colorismo e de
estruturas econômico-sociais. As comunidades litúrgicas são a base para uma preservação da
cultura espiritual e física ancestral e mais do que preservar memórias, eles reatualizaram as
culturas ancestrais, adaptando-as criativamente a um novo contexto, garantindo não apenas a
sobrevivência, mas a vitalidade das tradições africanas. Os terreiros são patrimônios
civilizatórios africanos aqui no Brasil, tanto para preservar a autoestima identitária, como para
transmitir o conhecimento entre gerações e servem de base para movimentos sociais de
resistência contra o racismo e pela igualdade, criando uma rede de apoio mútuo de acolhimento
e cura. A razão africana faz com que possamos refletir a partir de um novo olhar, sobre as
questões sociais no entendimento do corpo a partir de uma visão espiritual num sentido
cosmológico situando o corpo em um espaço não somente material, como também imaterial,
essa mesma razão nos situa em relação a constante ligação com nossa ancestralidade para que
possamos usar esses múltiplos saberes com respeito ao nosso aprendizado diário usado de
forma reflexiva e crítica para que consigamos mudar nossa realidade de forma mais justa eigualitária. Sodré (2019, p. 118) discorre exatamente sobre essa questão:
[…]De fato, o terreiro, enquanto guardião do axé, revela-se como uma contrapartida à
hegemonia do processo simbólico universalista, exibindo um segredo – o de de ter forças de
aglutinação e solidariedade grupal. É uma solidariedade para além das dimensões do
individualismo burguês, com raízes na divindade (princípios cósmicos) e na ancestralidade
(princípios éticos). Por meio da aglutinação grupal, acumulam-se de preferência homens, seresforças, ao invés de bens regulados pelo valor de troca.
Atualmente as elites socioeconômicas brasileiras que ainda são formadas
predominantemente por indivíduos brancos, tentam por meio de questões meritocráticas e
liberais, “botar panos quentes” na questão racial para camuflar o racismo estrutural. Tanto no
capitalismo como na colonização foram usadas estruturas sociais como a marginalização da
cultura, a desumanização, a relegação ao trabalho e a condenação do ócio para fazer com que
o povo preto fosse relegado a segundo plano e discriminado. E é por isso que as pesquisas têm
que ser cada vez mais incentivadas para que possamos ter uma visão real dessa participação
ativa dos africanos na formação social brasileira desde os tempos anteriores a dita colonização
e também temos que fazer o caminho de volta para buscarmos na África nossas verdadeiras
raízes e trazê-las em forma de educação para os mais jovens. A lei 11.645/08 infelizmente
ainda se encontra somente no papel e as escolas fazem questão de somente lembrar dela nos
meses de novembro e pior ainda no mês de maio. Enquanto a sociedade não influenciar o poder
público de forma mais eficaz, a lei não passará de mero dia de comemoração nas escolas com
atividades pontuais. É necessária uma implementação real das disciplinas interculturais e
interraciais na rede de forma obrigatória. Para que isso ocorra, é preciso um grande trabalho
em conjunto da sociedade, com os movimentos negros, indígenas e o poder público. A
implementação de escolas públicas interculturais com países africanos seria uma porta de
entrada para que essa realidade se torne um fato. Buscar com que essa razão africana se
estruture realmente nos corpos, na educação e na nossa cultura ancestral, através da diáspora
africana e indígena é indispensável. Para resolução desse cenário atual a razão africana
demonstra também na questão da alegria que se apresenta a característica central da busca da
liberdade do povo preto. É na roda de samba, no terreiro de candomblé, no círculo de maracatu,
nos festivais que essa alegria se revela em sua plenitude: uma celebração ruidosa, suada e
sublime de que a vida, em toda a sua complexidade trágica e gloriosa, merece ser vivida e,
sobretudo, dançada. É uma sabedoria profunda sobre a vida. Ela ensina que a verdadeira força
não está em evitar a dor, mas em saber metabolizá-la através da beleza, da comunidade e da fé.
Alexandra de La Torre
Referências Bibliográficas:
SODRÉ, Muniz. Pensar nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.
SODRÉ, Muniz. O fascismo da cor. Petrópolis: Vozes, 2023.
SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia e cotas no Brasil. Petrópolis:
Vozes, 2005.
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro brasileira. 3 ed. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2019.
NASCIMENTO, Beatriz. Documentário Ori. 1989.